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narradoras

x (twitter)

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Bastidores de um jogo que enche as redes de ataques misóginos

Por Ana Carolina Andrade, Giovanna Serafim, Jeová Pereira, Maria Eduarda Nascimento e Wanise Martinez

futebol e misoginia

Um jogo de futebol dura 90 minutos, mas quando a misoginia entra em campo nas redes sociais, fica claro que vai ter acréscimo. É que detrás da tela do celular ou do computador, não tem cartão vermelho nem apito final que segure as publicações dos haters do X (antigo Twitter) atacando e ofendendo as narradoras.

Sim, o alvo são elas, narradoras, substantivo feminino, e plural para todo o tipo de insulto – do pejorativo "ruim" ao agressivo "puta". Assim como ainda acontece em outros espaços, no ambiente virtual elas também são consideradas invasoras e deixadas de escanteio por muita gente, mesmo que tenham trabalhado 3, 4, 5 vezes mais para provar que suas vozes merecem sim estar no comando do jogo.

Com o objetivo de investigar o aumento desse tipo de comportamento no X - que passa por mudanças explícitas de redução no controle de conteúdo - e tentar compreender alguns dos impactos sociais associados à crescente misoginia nas redes sociais, acompanhamos os comentários sobre essas profissionais do esporte durante a realização da Copa do Mundo Feminina, já que este evento recente colocou muitas narradoras em evidência.

Falamos com algumas dessas mulheres sobre suas experiências no X e analisamos o tema junto a especialistas em redes sociais e comunicação, violência online de gênero e direito digital.

Segundo os dados compilados por esta reportagem, existem termos utilizados pelos ​usuários do X em seus comentários que violam expressamente os termos e ​políticas de uso da maioria das plataformas de mídias sociais, por serem ​diretamente ofensivos e se configurarem como discurso de ódio, em geral sendo ​removidos e bloqueados pelos filtros de segurança - ainda que, no caso do X, muitos ​deles permaneçam publicados.

No entanto, também apuramos uma série de outros termos que têm sido usados com muita frequência e que buscam se categorizar como opinativos, debaixo do argumento da liberdade de expressão, mas que podem ser compreendidos como pejorativos, potencialmente hostis para as mulheres e que estão sendo publicados de maneira sutil pelas pessoas, de forma a escapar dos filtros e bloqueios das redes sociais. Dá para conferir quais são os termos desses dois tipos que mais aparecem no X e entender como funcionou a nossa coleta de postagens logo abaixo.

Quem está por trás das telas?

A reportagem coletou e analisou postagens publicadas no X entre o início da Copa ​do Mundo Feminina, no dia 20 de julho, e o fim do campeonato, que encerrou em ​20 de agosto. As pesquisas por posts foram realizadas utilizando o recurso de busca ​avançada da plataforma para filtrar publicações que se referiam somente às ​narradoras.

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Para compreender o teor dos posts que ​escondiam ofensas utilizando o discurso ​de liberdade de expressão, as buscas ​pelas publicações foram divididas em ​dois filtros: opinativo e ofensivo. No ​filtro opinativo foram coletadas ​postagens que criticavam a atuação das ​narradoras, mas que não utilizavam um ​xingamento explícito, como “vagabunda”, ​por exemplo. Utilizando o filtro ofensivo, ​coletamos todas as postagens que ​continham xingamentos explícitos às ​narradoras.

O levantamento resultou em um total de 621 postagens e 990 citações de palavras usadas para buscar posts com críticas à atuação das profissionais, somando as buscas dos dois filtros. As palavras mais presentes nas postagens foram “ruim” e “horrível”, que fazem parte do filtro opinativo. Dentro do que a reportagem classificou como ofensivo, as palavras “puta” e “lixo” foram as que mais apareceram, sendo a primeira com 18 menções e a segunda com 15.

eles tentam driblar as redes

Total de postagens coletadas de 20 de julho a 20 de agosto, período em que aconteceram os jogos da Copa do Mundo Feminina

A análise também contou com a identificação dos sexos dos autores das publicações coletadas. Das 621 postagens, 566 usuários diferentes fizeram críticas à atuação das narradoras. Destes, 410 são homens, o que representa 72,44% do total. Já as mulheres somam 141 usuários, o que corresponde a 24,91%. Não foi possível identificar o sexo de 15 usuários , portanto, 2,65% dos posts foram publicados por perfis indefinidos.

os perfis por trás das críticas

Distribuição de gênero dos usuários que criticam narradoras de futebol

A problemática do X

“Tudo isso que não é pego pelos termos de uso das plataformas, acaba ficando ali ​como se fosse parte do debate, o que gera consequências pesadas, principalmente ​quando a gente pensa nesse comportamento de massa. Como as mulheres recebem ​uma quantidade muito grande desse tipo de comentário, isso vai refletir em efeitos ​que são ameaçadores e até silenciadores”, explica Mariana Valente, diretora do ​InternetLab, professora da Universidade de Saint Gallen, na Suíça, e autora do livro ​“Misoginia na internet: uma década de disputas por direitos” (‎Fósforo Editora).

Segundo a estudiosa, a simples remoção do conteúdo pejorativo ou a análise dos discursos individuais não é a solução para os problemas no X e em outras redes sociais. Existe uma questão mais estrutural na maneira como acontece o debate e a dinâmica nestas plataformas, e que poderia e deveria ser mais bem visibilizado e aprofundado por elas, mas que ainda não é.

“Várias pesquisas que têm sido feitas comparando as diferentes plataformas apontam o X como um lugar especialmente problemático, e uma das razões disso é o fato da arquitetura mais aberta dessa rede, aberta ao debate de pessoas que não se conhecem, ao conteúdo ser mostrado para pessoas que não seguem aquela pessoa que postou”, afirma.

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Há toda uma arquitetura e um sistema de incentivos que faz com que esse debate por lá seja mais confrontativo e mais tóxico, violento mesmo. Somado a isso, estão as práticas de moderação de conteúdo que foram ficando explicitamente menos protetivas

Mariana Valente, pesquisadora InternetLab

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Essas manifestações de violência online que parecem mais opinativas têm como ​forte característica o fato de serem escorregadias, difíceis de delimitar e às vezes ​até mesmo de se enquadrar como violência.

Entre 2021 e 2022, houve um aumento de 251% nos casos de denúncias de misoginia e opressão contra mulheres na internet, segundo a Safernet, que é a maior organização de defesa dos direitos humanos em ambiente virtual do país.

“Primeiro de tudo, temos de saber que ainda existe uma noção de que aquilo que acontece online é menos nocivo, por ter uma materialidade supostamente menor, ainda que também seja prejudicial e conte com aspectos muito complexos, como a criação de uma esfera de autorização da violência de gênero online em que esses comentários vão sendo normalizados e as pessoas entendem que, entre aspas, está tudo bem xingar uma narradora no Twitter”, diz Letícia Sabbatini, que é pesquisadora da Escola de Comunicação da Fundação Getulio Vargas (FGV).

Ela também cita que é muito comum que os ataques e ofensas online contra ​mulheres, como por exemplo esses que têm como alvo as narradoras de futebol, ​venham revestidos e camuflados de humor.

Letícia explica que, como isso ainda esbarra muito no discurso da liberdade de ​expressão, o que vemos é a instrumentalização e a deturpação desse direito, que ​vai sendo utilizado para garantir que as pessoas tenham o direito de agredir alguém, ​mas não que aquele alguém tenha o direito de se expressar contra a agressão.

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Como pesquisadores, notamos que é comum esse tom de brincadeira, de emojis que denotam risadas, de memes, que são utilizados justamente para camuflar o teor violento da violência. E aí o que que acontece quando esses agressores fazem isso? Eles conseguem se respaldar de alguma forma, porque se forem acusados de serem misóginos, vão dizer que se tratava apenas de uma brincadeira, conseguindo até mesmo contestar essa argumentação e a transformar em crítica

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Letícia Sabbatini, pesquisadora da Escola de Comunicação da Fundação Getulio Vargas (FGV)

O que dizem elas, as narradoras

luciana mariano

Luciana Mariano foi a primeira narradora de futebol da televisão brasileira, estreando em 1997 e fazendo narrações até 1999, quando precisou sair da função e voltar a ser repórter porque “as emissoras de TV não tinham mais interesse em ver mulher narrando futebol”. Passados 19 anos, em 2018, Luciana recebeu um convite da ESPN e voltou a narrar na TV. Só que de lá para cá, ela precisou enfrentar outro desafio: as ofensas no X e em outras redes sociais.

“Quando eu comecei nos anos 90, se as pessoas quisessem me xingar, precisavam pegar uma carta, escrever, colocar no correio, demorava muito. Ninguém se dava a todo esse trabalho. Mas depois do meu retorno, comecei a compartilhar esses ataques com a nova safra de narradoras”.

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Segundo Luciana, os comentários ofensivos surgem durante todos os jogos, mas são sempre piores quando se trata de disputas masculinas.

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Percebo que o ranço mesmo é a mulher narrar jogo masculino, aí eles entram e atacam. É gente que não gosta de mulher, que é misógino mesmo e pronto

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Luciana Mariano

Com mais de 200 processos atualmente na justiça contra haters da internet, ela revela que conta com a ajuda de uma equipe de vários profissionais, que atua gratuitamente a seu favor e contra a misoginia nas redes, desde 2022.

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Mesmo com a possibilidade dos ataques, a narradora não pensa em deixar o X e outras redes sociais porque gosta muito da interação com as pessoas e acredita que as próprias plataformas digitais é que precisam se posicionar e oferecer mais segurança. “A gente não pode ficar se defendendo sozinha, ou precisar usar recursos próprios para fazer isso. As plataformas precisam nos ajudar porque, por enquanto, essa ajuda é extremamente precária. Você bloqueia a pessoa e ela vai lá e cria mais 15 contas fake, não adianta nada bloquear. Então você denuncia e a conta é bloqueada e dá na mesma. É preciso que as plataformas façam alguma coisa mais efetiva”, conclui.

MILA GARCIA

Milla Garcia é narradora desde 2018, sendo a primeira mulher a narrar um jogo de futebol disputado na Arena Corinthians. Ela atua hoje em dia pela ESPN Brasil e Star Plus Brasil, com narração de futebol e outros esportes, como basquete, e sempre foi alvo de comentários pejorativos, machistas e misóginos no X e em outras redes.

“Às vezes, você nem começou a narrar o jogo e já começa. Os caras não querem que a mulher esteja ali ocupando o espaço de narração. Para mim, receber críticas é normal, o problema é atacar, agredir, xingar, ofender, ameaçar, isso é que é a parte ruim”, revela.

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Milla teve uma passagem recente pelo canal CazéTV, como streaming no YouTube, onde narrou jogos da Copa do Mundo Feminina em julho e agosto. Apesar do tema ter ganhado bastante espaço na mídia, ela não sentiu que as ofensas ou ataques aumentaram durante as transmissões das disputas femininas. Segundo ela, o nível de hate aumenta dependendo da importância que o jogo supostamente tem.

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Se você faz Inglaterra e Espanha, por exemplo, os caras vão ficar revoltadíssimos por ter uma mulher narrando um jogo como Inglaterra e Espanha, imagina, eles vão ficar literalmente indignados. Já num jogo como Cazaquistão e Macedônia, que não tem tanta relevância para eles, daí aceitam um pouco mais. Para eles, a mulher não pode ter espaço num jogo considerado tão alto assim

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Milla Garcia

Ao contrário de Luciana, Milla nunca iniciou um processo judicial por conta de ofensas em comentários, mas às vezes questiona o que vê no X. “Olha, ali é um lugar que eu fico pensando que às vezes se não tivesse, também não ia fazer tanta falta”.

luciana zogaib

Luciana Zogaib também é narradora de futebol desde 2018, quando estreou no rádio no primeiro jogo da final do campeonato carioca, surpreendendo os ouvintes que esperavam a voz de um narrador que acabou ficando preso no trânsito. Daí em diante, ela passou por emissoras e hoje atua pelo canal online de esportes GOAT. Em todos os locais, foi vítima de comentários ofensivos.

“Os ataques nas redes sociais acontecem desde sempre, desde o primeiro momento até os dias de hoje. As pessoas não chegam a me ofender diretamente no inbox, mas é só eu começar uma transmissão, dar boa noite e as pessoas que nunca me ouviram já falam ‘Ah é mulher, não vou nem ouvir’, ‘mulher narrando não serve’, ‘mulher não serve pra narrar’”.

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Apesar dos comentários pejorativos frequentes no X durante suas narrações, Luciana diz nunca ter precisado fazer boletim de ocorrência ou entrar com processo na justiça. “Acho que é tentar saber lidar com isso, mas às vezes não sei se vale a pena o esforço, sabe? Muitas vezes eu até diminuo essa interação quando percebo que podem vir mais críticas assim pesadas”, afirma a narradora, citando as cobranças que as mulheres sofrem quando acontecem erros na narração e como isso é usado para fazer ofensas até sobre a voz delas.

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Luciana conta que no canal onde ela trabalha, as transmissões de futebol precisam ser monitoradas e os comentários ofensivos são excluídos, mas quando excedem o mínimo aceitável, os próprios moderadores precisam fechar o chat.

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Na minha opinião, as redes sociais como o Twitter deveriam ter algum tipo de monitoramento mais rígido, poderiam agir mais a nosso favor. Não é fácil ficar nas redes, mas não saio porque precisamos resistir

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Luciana Zogaib

fernanda arantes

Fernanda Arantes começou a atuar como narradora de futebol em 2019, após uma oportunidade na EPTV, que é afiliada da Rede Globo em Campinas. Ela foi a primeira mulher a narrar pela CBN, com um amistoso de futebol feminino entre Brasil e México, e também a primeira mulher a narrar pelo globoesporte.com, com a final da Taça das Favelas feminina. Recentemente, narrou a Liga Feminina de Futsal.

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Ela relata que já foi alvo de vários ataques e ofensas no X e outras redes sociais, além dos campos de comentários que fazem parte das próprias transmissões, mas teve um jogo em especial, que fazia parte do Campeonato Paulista da Série A2 2023, que foi além do considerado costumeiro.

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Era um jogo do Juventus e rendeu muitos, mas muitos comentários negativos, com as pessoas inclusive mandando eu ir para a cozinha e rejeitando a narração somente pelo fato de eu ser mulher

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Fernanda Arantes

A narradora diz gostar muito da interação com os fãs no X e em outras redes sociais e não pensa em sair, mas reclama da falta de segurança por parte das plataformas. “Precisamos de mais ajuda porque quando acontece em uma rede social nossa, a gente ainda consegue ter acesso para tentar um processo, mas quando é comentário solto ou um tweet, muitas vezes não temos como saber de onde veio”, explica.

Apesar de nunca ter entrado na justiça contra as pessoas que fizeram comentários ofensivos a seu respeito, ela também revela que não dá para confiar que as chefias responsáveis por monitorar os comentários vão fazer algo para garantir mais proteção, pois estão mais interessadas no número de pessoas que estão assistindo à transmissão de futebol do que naquilo que elas estão falando, que muitas vezes é ofensivo, como no caso que ela viveu durante o jogo do Juventus.

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Misoginia é trending

Durante a investigação da reportagem, percebemos que esse comportamento tóxico dos usuários do X em relação às narradoras de futebol fica bastante evidente quando comparado com os comentários que são feitos sobre os narradores. Eles também são alvo de ataques e ofensas na rede social, mas não da mesma maneira e nem na mesma frequência que elas. Inclusive, no caso das narradoras, muitas vezes nem há menção dos seus nomes, apenas comentários como “essa narradora é péssima” ou “que narradora escrota”, o que faz com que muitas delas sejam xingadas por jogos que sequer narraram.

“As mulheres não serem chamadas pelos nomes delas tem muito a ver com uma rejeição à ocupação das mulheres de certos espaços. E, neste caso, estamos falando de uma dupla camada, pois se trata de mulheres comunicadoras em geral, que violam as normas tradicionais de gênero de discrição, de não se posicionar publicamente e não estar nos espaços públicos de representação, e também violam as normas de divisão de espaços relacionadas ao futebol”, argumenta a especialista Mariana Valente.

Essa também é a opinião de Letícia Sabbatini, que acredita que esses ataques no X que despersonificam as narradoras de futebol, e mulheres de maneira geral, são manifestações muito explícitas da misoginia. “Ao negar o reconhecimento delas enquanto sujeitos sociais e demonstrar incômodo com as suas atuações em um espaço de liderança, como no caso da narração do jogo de futebol, essas pessoas mostram não apenas um ódio às mulheres, mas fomentam uma espécie de ferramenta que ao mesmo tempo que alimenta, é também alimentada por um contexto patriarcal”, explica

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É a misoginia em seu estado puro, de não suportar ver aquela mulher num espaço de liderança e poder dentro de um contexto que é majoritariamente masculino

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Letícia Sabbatini - pesquisadora da FGV

Segundo Letícia, esse é um exemplo forte de que ainda existe um entendimento de que as mulheres deveriam permanecer na esfera privada, cuidando das suas casas, dos seus maridos, dos seus filhos, sendo esposas e mães, e não ocupando lugares na vida pública, no esporte ou na política.

“Existe essa aversão à presença da mulher nestes espaços e uma tentativa de minar essa mulher, de fazer com que ela volte a essa esfera da qual ela nunca deveria ter saído”, afirma a estudiosa, explicando que, com isso sob perspectiva, é preciso que a sociedade normalize a presença das mulheres narrando todos os tipos de jogos, independentemente de serem de homens, de mulheres, de um campeonato menor ou maior.


90% das pessoas têm algum tipo de preconceito contra as mulheres, diz o relatório “Índice de Normas Sociais de Gênero 2023” do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). No Brasil, esse índice é de 84,5% e indica que a discriminação de gênero não diminuiu desde a última década.

90%

80 países

Earth, Earth Globe, Asia and Australia on the Globe, Globe Centered to Indonesia
Earth, Earth Globe, Asia and Australia on the Globe, Globe Centered to Indonesia

84,5%

Brasil

Mapmaker Illustrated Brazil Map
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x mais inseguro não barra discurso misógino

Essa intensificação de ataques e ofensas de gênero nas plataformas, em especial no X, está bastante ligada ao contexto político dos últimos anos, em que muitas figuras de destaque e os próprios parlamentares por várias vezes alimentaram a esfera de autorização da violência, tecendo comentários misóginos e sexistas sobre as mulheres que ocupam diferentes cargos de poder, em diferentes áreas.

Com isso, foi-se criando uma sensação de impunidade favorecida pela própria arquitetura e cultura do X, de dar muito espaço para discussões que são mais acaloradas sobre assuntos diversos e, junto a tudo isso, também existe a ausência de políticas de regulação.

“No momento, o que a gente percebe é um total fechamento do X a qualquer cooperação de combate à violência, de combate à misoginia como um todo. Com a entrada do Elon Musk, inclusive, foram retiradas e canceladas várias medidas de proteção, como moderação de conteúdo, e os próprios dados que nós pesquisadores tínhamos acesso, não temos mais por que a API pública do antigo Twitter foi cancelada. Isso acaba inviabilizando que a gente aponte com mais transparência que tipo de violência acontece ali e de que forma o agressor age”, diz Letícia Sabbatini.

Essa dificuldade citada pela estudiosa também foi sentida durante a investigação desta reportagem, na captação do número de comentários e na análise da rede social como um todo.

E isso não é de agora, pois desde a chegada de seu novo proprietário, o empresário Elon Musk, o X ficou ainda mais inseguro, com os próprios funcionários e ex-funcionários denunciando à BBC, em março deste ano, que a plataforma não seria mais capaz de proteger os usuários de ofensas misóginas, intensificação do discurso de ódio, além da desinformação coordenada e até mesmo da exploração sexual infantil. A partir deste mesmo mês, o X passou a responder a todos os pedidos de imprensa com um emoji de cocô. A informação, inclusive, foi divulgada pelo Elon Musk em um tweet.

Essa dificuldade citada pela estudiosa também foi sentida durante a investigação desta reportagem, na captação do número de comentários e na análise da rede social como um todo.

Muitos problemas, poucas soluções

Assim como outras redes sociais no Brasil, o X ainda não segue uma legislação específica de segurança que estabeleça normas e deveres mais rigorosos de forma a reduzir o discurso de ódio e outros conteúdos violentos que são divulgados por meio de comentários, vídeos e outros formatos em sua plataforma.

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As plataformas não são apenas intermediárias, elas contribuem direta ou indiretamente para a circulação e a produção desse tipo de violência e também para a aceleração da circulação da violência, por isso há a necessidade urgente de regulação. Com essa autorregulação segundo os termos que vemos hoje, fica fácil para as plataformas não olharem para essas questões, ou olharem apenas de forma pouco transparente e muito rasa

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Letícia Sabbatini, advogada

Entre a linha tênue que define o que é opinião ou insulto, estão os recursos e artigos de lei à disposição de quem se sente ofendido por uma postagem nas redes sociais. Em 2014, a aprovação da lei nº 121.965, conhecida como Marco Civil da Internet, determinou princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil, o que inclui responsabilidades por parte das plataformas de redes sociais.

Apesar de o Marco Civil contar com ampla abrangência para a regulamentação dos direitos humanos no ambiente digital, nem sempre é simples distinguir se uma postagem está expressando opinião, ou se é uma ofensa, às vezes sendo necessária uma intervenção judicial para que determinada postagem seja avaliada e eventualmente removida.

Segundo a advogada especialista em Direito Digital Aplicado e Direito das Plataformas Digitais pela Fundação Getulio Vargas (FGV), Thays Bertoncini da Silva, conteúdos que escondem ofensas por trás de um discurso que utiliza a liberdade de expressão como argumento devem ser analisados em diferentes critérios. “Acaba sendo muito subjetivo dizer o que é ofensivo e o que não é. Depende muito de uma análise do que é esse conteúdo, em qual contexto ele está inserido e quem está fazendo esse comentário”.

No caso das narradoras de futebol, como os ataques nas redes sociais estão, na maioria das vezes, relacionados ao fato de elas serem profissionais mulheres e ocuparem um cargo que por muitos anos teve a voz masculina como protagonista, a especialista em direito digital pontua que não há uma lei específica que possa proteger as mulheres quando uma postagem tem características misóginas, ou seja, demonstram ódio ou aversão a elas e busca colocá-las em posição de inferioridade em relação aos homens.

Embora ainda não exista legislação específica, Thays comenta que há outros dispositivos legais que dão suporte para a vítima quando a ofensa está relacionada com a misoginia.

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No âmbito penal, uma postagem ofensiva pode se enquadrar nos crimes de injúria, difamação e ameaça. No âmbito cível, é possível a responsabilização do usuário para fins de retratação e indenização da vítima por danos morais

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Thays Bertoncini da Silva, advogada

Projeto de Lei quer criminalizar a misoginia

No dia 6 de setembro deste ano, a Comissão de Defesa da Mulher da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 890/2023, da deputada Silvye Alves (União-GO), que foca na punição das práticas misóginas, propagação de ódio ou aversão praticados contra mulheres por razões da condição de sexo feminino. Para isso, o PL quer alterar a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, tornando crime a prática, a indução ou a incitação da misoginia.

A pena prevista é de reclusão de 2 a 5 anos e multa, aumentada pela metade nos casos em que a injúria for praticada na internet ou meios de grande repercussão que fomentem a disseminação à misoginia. Além do aumento da pena, o PL também cria uma modalidade qualificadora para o crime de injúria, quando praticado por conduta misógina, com pena de reclusão de 1 a 3 anos e multa.

Outro Projeto de Lei apresentado este ano pela deputada Dandara Tonantzin (PT-MG), o 872/23, também pretende criminalizar a misoginia, integrando o rol previsto na Lei 7.716/89, que dispõe sobre os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Caso seja votada, a proposta prevê reclusão de 1 a 3 anos e multa, além de poder ser triplicada quando o crime acontecer em redes sociais e publicações na internet.

Cenário de violência online pede atuação

Mesmo com o Marco Civil da internet e um projeto de lei contra a misoginia em andamento no país, a falta de regulação por parte das redes sociais, como o X, ainda é considerada uma grande preocupação, já que isso também significa mais dificuldade na hora de assegurar medidas de garantia de segurança e dos direitos não apenas das mulheres, mas também das pessoas negras, pessoas indígenas, pessoas LGBTQIA+ e outros grupos minorizados.

Para as duas especialistas consultadas pela reportagem, é importante valorizar a utilidade das plataformas para promover a mobilização desses grupos, como por exemplo manifestações a partir de hashtags que visam combater o assédio e a misoginia, entre outros temas de grande peso social, mas não podemos normalizar que esse ambiente online de violência se perpetue, como vimos com esses comentários ofensivos, e que nada seja de fato feito.

“Temos de participar desse debate de regulação das plataformas, levando em conta a complexidade dele, pois isso não é algo simples mesmo. Mas é nessa complexidade que também está o fator da segurança, que é um elemento importante e necessário para se considerar quando falamos de expressão das pessoas nos espaços virtuais”, conclui a estudiosa Mariana Valente, do InternetLab.

A narração feminina de futebol no Brasil começou muito tempo antes da existência das redes sociais, como o X. Conheça um pouco dessa história na linha do tempo abaixo:

linha do tempo

1920

Com mais partidas realizadas, o futebol feminino ganhou visibilidade e gerou revolta em parte da sociedade.


1941

Durante a Ditadura Militar, um novo decreto foi publicado reforçando a proibição do futebol para mulheres.

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Primeiros registros históricos de partidas de futebol por mulheres, retratadas como atração de circo.

1940

Governo Getúlio Vargas assina decreto proibindo o futebol feminino.

1965

1970

Zuleide Raniere é a primeira mulher a narrar uma partida de futebol no Brasil.

1979

É realizada a primeira Copa do Mundo de Futebol Feminino.

1996

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Rádio Mulher é criada e abre as portas para as mulheres trabalharem com futebol.

1971

O futebol feminino deixa de ser proibido no Brasil.

1991

O futebol feminino estreia nas Olimpíadas de Atlanta, nos Estados Unidos.

Luciana Mariano narra pela primeira vez uma partida de futebol na televisão.

2018

Renata Silveira é a primeira mulher a narrar uma partida de Copa do Mundo na TV aberta.

A história continua...

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1997

Canal Fox Sports faz concurso para uma mulher narrar a Copa do Mundo da Rússia e a TNT Sports faz reality show para escolher uma narradora para a semifinal da Champions League


2022

Trabalho final realizado para a matéria de Investigações Guiadas por Dados no curso de Master em Jornalismo de Dados e Data Storytelling no Instituto de Pesquisa e Ensino Insper.